quinta-feira, 20 de junho de 2013

THE BOOK OF DISTANCE [letra C]

Cisão
ou
Corpos à distância
ou
Centelha de amor puro
ou
Chuva com porquê
ou
Cedo demais para tanta distância

Apoiou-se no encosto e sentou o corpo no banco a ver o mundo acontecer. Reconhecia que ver pessoas o comovia. Pessoas, sozinhas ou acompanhadas, apressando-se em passos rápidos, sem vagar para pormenores; eram poucas as que se demoravam. Jorge pensou, então, que havia de regressar a casa e sentir o cheiro da almofada. O cheiro que já lá não está. Lembrou-se desse cheiro e de como no princípio, quando te conheceu, costumava ficar chateado logo ao pressenti-lo. Habituar-se-ia. Ao ponto de sentir demasiado a sua falta.
Voltando ao banco do jardim: as pessoas nem reparavam que estava ali; era mais um velho transparente: um daqueles até sem nome ou apelido, com 73 anos ou sem idade nenhuma, solitário, sozinho, viúvo qualquer. Um Jorge qualquer, num jardim de uma cidade qualquer. Afinal: quem eram aquelas pessoas?, que saberiam de si? Avançava firme na sua vocação: continuar rumo à vasta noite, sem o saber, mas também sem pestanejar, como quem tem a certeza de que qualquer instante é mau para tal noite chegar, aquela que não admite preparação, ou em que toda a preparação é mera retórica. Pensou que ainda não era a hora, que ainda não estava preparado, que ainda tinha contas a ajustar com a sua memória. A solidão trama qualquer incauto: excesso de vestígios da vossa ligação e ninguém a quem os passar. É isso! Não pode por ausência de a quem transmitir... Primeiro tem de preparar tudo. Basta! Levantou o seu corpo mole de quem já viveu bastante, nunca o suficiente, e sentiu tudo de todas as maneiras para ter na pele enrugada a subtileza da experiência.
Avançou com o sentido no cheiro da almofada, no sentido do futuro. Assim era: em casa, o silêncio, o cheiro neutro da ausência; ah, sim, que o vazio não tem cheiro. O sol da tarde enchia a cozinha toda, mas não o espaço que tradicionalmente se diz ser o do coração, pois todo ele era distância. Tanta presença. Sentou o corpo sobre o passado todo, à procura de ti. Sim, de ti, que te debruçaste na dobra da madrugada sobre o instante entre o vazio e a luz. Com e sem tempo. Rememorou: a seu tempo, ele e tu amaram abundantemente, virilmente, amaram tudo e saber isso bastava. Ou achas que não? Ah, claro: queremos sempre mais. Ou de outra forma.
Estava Jorge assim: nunca se esqueceu do teu cheiro. Do sabor do sexo. Tanto tempo gasto e tudo igual. Chegaste a dizer-lhe que distância nenhuma havia de vos separar. Não sabias nessa altura que há promessas que não se devem pronunciar sob pena de terem de ser cumpridas. E foi o que aconteceu. Além de perceberes isso, percebeste que a tua sobrevivência dependia da memória de Jorge. Enquanto se lembrasse, viverias. Memória fresca. Carne viva. Assim vives tu.
Tão longe daqui, aqui mesmo, agora, tocas-lhe na mão esquerda que toca a mesa que é tocada pelo sol. Jorge não te sente. Mudas de tática e, olhos frente a frente, dizes-lhe «Não tenhas medo». E, à distância possível, a de um exato pensamento, ele pensa «Não tenho medo! Não tenho medo! Não desisto agora!» Apesar de a tarde ser de sol, começou a ficar inverno, o nevoeiro a adensar-se e começou a chover sobre o seu rosto. E tanto! Uma terrível tempestade. Desconheces por quê. Ou entendes,  e achas-te impotente – o teu cheiro só lhe chega através do registo da memória, o que, convenhamos, não é exatamente a mesma coisa. Acho que sabes que ele também se sente assim: limitado. Aprisionado. Falta-lhe ver-te, sentir carne contra carne – temperatura, cor. A distância que é nenhuma é toda a distância imaginável. Não te vê, não te sente, mas pressente-te aqui e ali, nos espaços, nos objetos. Repito, o teu cheiro é só a lembrança de ti, vivo, quente; vestígios da tua presença vigorosa, do teu ritmo enérgico, antes da súbita partida. Ninguém merece ficar assim sozinho! Mesmo agora, tantos anos depois, continuas a percorrer cada recanto do seu corpo, és uma memória muito viva, muito autêntica do que é o amor puro.
A chuva não pára. Adensa-se, mas, num súbito de repente, desce o silêncio mais silencioso. Tu gelas de medo, primeiro, da carne fria do Jorge, depois, por entenderes – quantas vezes morremos por entender? Perceber o mundo é uma coisa muito séria, absorve-nos tanto, tolhe-nos os sentidos e a consciência.
Eis que chove sobre ti.


Parece que sim, que se esfumou a fronteira da distância, em que todo o reencontro é um choque frontal. Acabou-se: os corpos que eram à distância são agora formas de uma energia perfeita. Mais nada, já distância nenhuma entre vós. Pergunta que se impõe: que memórias vos manterão vivos?
Eis que parou de chover também no teu rosto.



Lisboa | xxiv.iiii.mmxiii

6 comentários:


  1. é sim, um imenso orgulho; como te compreendo...
    Simplesmente sem palavras fiquei ao ler estas palavras, Zoninho.
    Que me desculpem todos aqueles que já deram o seu melhor com o seu contributo para este maravilhoso "Book od Distance", mas este texto é de longe o melhor de todos até aqui.
    Tardou, mas valeu a pena!!!

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  2. João,
    tenho algumas dúvidas acerca da sua qualidade, mas agradeço a tua simpatia. obrigado, João! e assim sou eu que fico sem palavras. nem sequer as gastei todas (obviamente), mas seja pela demora em terminar a minha participação seja pela dificuldade em perceber logo o "enredo", fiquei muito insatisfeito. a única "vantagem" é que toda a história foi muito visual e foi-me difícil traduzir tudo o que é "voz interior", psicologia e imaginação. enfim, a solidão é uma coisa fodida!
    abraços (e, novamente, obrigado!)

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  3. Sem dúvida, uma das grandes histórias do Moleskine ; )
    E a forma como a apresentaste é arrebatadora.
    Abc

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    1. obrigado, Sad. o teu Moleskine vai chegar ao fim recheado de surpresas, nem imaginas quantas. sim, essas eu não fotografei! nem tudo pode ser mostrado, não é?
      abraços

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  4. Muito bonito, o amor para lá da morte e do lado de lá da morte...

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